quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Terra de ninguém

Acreditem: é 2011, e nós ainda vamos falar nas próximas linhas sobre a perda da inocência e que o sonho acabou.  Essa nostalgia toda vem da Lituânia, em que o time anfitrião foi despachado pela surpreendente Macedônia nas quartas de final, de modo dramático, por dois pontos. 

Confira nas fotos abaixo:

Torcedoras lamentam a eliminação nas quartas do Eurobasket
Nas ruas, os fanáticos lituanos não acreditam no revés
Num dos poucos países do mundo em que o basquete é religião – milhares de pessoas se agruparam a céu aberto em espaço público para ver o jogo das quartas de final do o telão –, os corações desses seguidores foram despedaçados com a derrota da seleção dos Lietuvas pelas mão de Bo McCalebb e sua Macedônia. 

Agora pare e tente perceber se há alguma coisa de errado no parágrafo acima. 

Ok, você pode até estranhar o fato de que há pessoas dispostas a ver um jogo de basquete sentadas na rua, algo impensável num país que a modalidade é gerida feito um hobby de Brunoro e no qual, longe do futebol, só se enche um ginásio em final da esgoelada Superliga de vôlei, e olhe lá. Mas o detalhe que merece ser ressaltado aparece no complemento da frase: na terra dos Ilievskis, Antics e Samardzikis, o nome Bo McCalebb não parece se encaixar muito bem. 

Estamos falando de um armador americano, natural de Nova Orleans, cuja casa foi destruída pela passagem do furacão Katrina, que nunca teve uma chance real na NBA antes de construir sua carreira Europa e agora se tornou o jogador-símbolo do balcão de negócios e da competitividade extrema que domina o mundo da FIBA.

Você, aí, pode questionar qual é o problema disso tudo. A Rússia já não foi campeã europeia com um JR Holden na armação? Não existe um Reque Newsome jogando pelo Uruguai há anos? O Brasil, mesmo, não tentou naturalizar Larry Taylor para a Copa América? Sim, sim e sim, e aí está a gênese de um tremendo problema.

Deixe fazer, deixe passar. 

Foi esse o lema da federação internacional durante os últimos anos, e, à medida que o jogo cresceu e a briga por medalhas ou meras vagas em alguns torneios se intensificou (e "intensificou" é um baita de um eufemismo), chegamos aos dias de  vale tudo entre as confederações. Entre lutar com suas próprias forças e correr o risco de ver suas campanhas frustradas, dirigentes, técnicos e jogadores resolveram apelar. 

Há casos e casos. Holden só foi se tornar um jogador de destaque com a camisa do CSKA, vivendo por anos em Moscou. Larry jajá ganha a chave da cidade de Bauru. Al Horford se chama Alfredo, fala espanhol e seu pai defendeu a seleção dominicana. Você pode construir bons argumentos, portanto, a favor deles. Mas quando um Chris Kaman se torna alemão devido aos seus bisavôs e quando Serge Ibaka compete no torneio de enterradas da NBA como um AirCongo e veste a camisa da Espanha, é sinal de que a coisa degringolou.

Kaman e Ibaka foram inscritos no Eurobasket deste ano para aumentar as fileiras de um grupo que extrapola qualquer limite do bom senso,  cujo capitão é McCalebb. A eles se somam, por exemplo, o armador 'búlgaro' Earl Rowland, na verdade um norte-americano nascido em Berlim, o armador 'croata' Dontaye Draper, líder em assistências da competição e nascido em vizinhanca barra pesada de Baltimore, o armador 'ucraniano' Stiven Bertt, de Nova York e... É melhor parar a pesquisa por aqui.

Draper e Bertt hoje defendem clubes de seus país adotivos, mas eles chegaram esses times apenas no ano passado. Rowland já atuou na Austrália, na Letônia, na Alemanha e na Itália, mas nunca na Bulgária. O mesmo vale para McCalebb, que passou batido pela NBA ao se formar pela Universidade de New Orleans e defendeu na Europa o pequenino Mersin, da Turquia, até ser pinçado pelos scouts do Partizan Belgrado e iniciar sua jornada de conquista europeia – hoje ele é contratado do poderoso Montepaschi Siena. Nunca jogou em um clube do país dos bálcãs. O que não o impede de fazer estragos no Eurobasket com o seu valioso passaporte (que lhe facilita a inscrição as ligas do continente) e a camisa em vermelho e amarelo. 

Bandeja para McCalebb, explosivo
Não tenha dúvida: a Macedônia é a sensação do torneio continental, depois de passar a primeira fase invicta, só sofrer sua primeira derrota para a Rússia no complemento da segunda etapa e eliminar os donos da casa nesta quarta-feira. Ninguém jamais apostaria em um desfecho desses para o país. Essas façanhas seriam impossíveis sem o americano, apesar dos esforços do pivô Pero Antic, que é o segundo cestinha da equipe, com 90 (noventa!!!) pontos a menos na competição após nove rodadas. 

McCalebb já liderou o Partizan e o Siena por duas temporadas consecutivas rumo ao Final Four da Euroliga. Praticamente não há defensores europeus que conseguem brecar suas explosivas infiltrações, e o resultado está aí: ele é o quarto pontuador do Eurobasket, com 20,9 por jogo. Ele também lidera a seleção em roubos de bola e assistências e é o terceiro em tocos e o quarto em rebotes. Está bom?

A diplomacia da Macedônia certamente não tem o que reclamar. Em troca de uma simples emissão de documento, eles já estão mais do que no lucro, tanto a federação como McCalebb, aquele que talvez nunca tenha pisado no país. 

Enquanto isso, a Lituânia, com uma população de pouco mais de três milhões de pessoas, ainda faz as coisas como antigamente, confiando na sua capacidade incomum de produzir talentos e incentivar uma paixão nacional. Nem que essa paixão tenha de partir o coração de vez em quando. 

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